"A felicidade é como a pluma...", nisso Vinícius de Moraes e Schopenhaeuer estariam em acordo. De fato é algo assaz volátil, como a doce ilusão do carnaval, e aqui estariam em acordo também - a felicidade maquia uma característica mais perene, permanente, que realmente é. O que tem estatuto de ser, o que a felicidade maquia, como máscara carnavalesca?
A música nos é bem familiar, tanto por ser um hit "viniciano" quanto porque sua letra nos evoca a velha companheira tristeza que, menos ou mais dramática, é presente a todos. É a tristeza a perene, aquilo que é realmente, que está enraizada de modo absoluto na realidade, a que sempre retorna, a que não tem fim? Estamos condenados ao drama, à melancolia, à dor, orbitando eternamente em torno da tristeza, verdade fatal que sempre se presentifica, independente da intensidade de uma felicidade que não seria mais do que prenúncio de uma tristeza que sempre advem?
Se é consolo não sei, mas examinem-se um instante: passaram vós o mais dos dias de suas vidas a se atirarem ao chão, em choro soluçante e gritos lancinantes, num sofrimento constante cujo alívio, a felicidade, vinha muito quando em vez e se transformava em pó ou lágrimas? Ora, fosse assim seria o tédio!
Ei-lo, o tédio! Aí está ele, o que vem sem prenúncio, mas que fatalmente vem, o que é perene, o que surge a pés de pano e se apossa de tudo (mesmo deste texto, é provável), aquele que é. Ele é o que move o mundo, o que cria, o que dá e o que tira (e com a mesma mão, posto que é princípio e fim de empreendimentos), o que despetala amores, o que concebe assassínios em casos extremos, quando realmente não se tem o que fazer. Nossa vida é tédio na raiz, é ele o que dura para além da felicidade e da alegria; Schopenhauer de fato diz: oscilamos entre dor e tédio.
Que sobraria a nós, homens do novo milênio, que suprimimos a dor por meio de doses diarias e bem reguladas de anestésicos mui sofisticados, além do tédio? Nós matamos a dor, ou diante dela damos de ombros, otimistas que somos com o progresso e com o "estar vivo". Tomamos distância dos perigos, abrigando-nos em torres seguras, sem que precisemos sujar nossas mãos definitivamente para nada, em cujo altar colocamos um novo Deus, sob tutela do qual nos protegemos não de feras bestiais ou qualquer outra ameaça. Louvamos o Deus "entretenimento", nome difícil, que repetimos com os olhos brilhantes, ávidos por suas dádivas, sob risco de, não conseguindo-as, cairmos no tédio absoluto. Toda a necessidade por entreter-se não viria daí, do tédio, que já se apossa de toda uma vida em que não há mais dor, a nossa, burguesa (no sentido mais fundo que a palavra alcança), cuja meta é uma fruição tediosa, infrutifera e absurda?
Do tédio não se escapa (até que a morte nos separe). Schopenhauer já o compredia além de um mero estado de humor, como afeto essencial de nossa existência. Levinas via no tédio o caráter mesmo do Ser, nossa experiência mais original do existir, pois experimentamos a exuberância do Ser, sua completude, sua saciez absoluta e ao mesmo tempo insaciável, o perpétuo começar que existir implica, a ausência de sentido com que ela nos aparece. Heidegger também se interessou pelo tédio, para quem este seria a vivência do Ser cru, desinteressada e inafetiva, quando cessamos de nos animar com os projetos mundanos. Sartre o identificava à náusea, à ausência de sentido e gratuidade da existência, e à angústia que daí surge enquanto incerteza de que nossas escolhas tenham sidos as melhores que pescamos no lodo do grosso caldo do tédio e do nada.
Podemos resumir: o tédio, sendo experiência essencial da existência, seria condição e motivante do próprio pensamento (filosófico, ou o que pensa o Ser). Vinícius, Schopenhauer, Levinas, Heidegger e Sartre viam assim o tédio. Eu vejo uma tela de computador, trespassado pelo tédio, e, quase que sem nenhuma motivação pra fazê-lo, me pego, senão me entretendo, ao menos tentando pensar o tédio.
Hoje todas as propagandas, anúncios e em todos os lugares fazem apologia à uma vida agitada, radical, que não pode ser desperdiçada, uma vida plena e vivida no limite. E perdemos nosso tempo em frente à máquina do tédio (TV), desperdiçando em verdade muitas horas assistindo esses anúncios. Enraigamos mais ainda o tédio em nós mesmos. Uma ironia, não?
ResponderExcluirAbraços, priezão!
Boa, meu velho. Só hoje parei pra ler com olhos de ler.
ResponderExcluirE a resposta à primeira pergunta é sim. Estamos fardados à tal melancolia. Quanto mais chafurdamos na ignorância, quanto mais um sofá nos suga, quanto mais "entertenimento" nos assistir - assistência malévola - mais marasmo. É preciso maquiar a dor; máscaras carnavalescas servem como cantou Vinícius e Tom. Porém Belchior me serve mais:
A minha alucinação é suportar o dia-a-dia,
E meu delírio é a experiência com coisas reais
...
Amar e mudar as coisas me interessa mais
É isso, meu velho. Há alegria em saber que não se é alegre todo dia. Conhecer-se, provar do seu próprio gosto, tomar uma dose de você. É um ponto de compensação, vá lá, dirão: assim só se é feliz pensando na tristeza. E eu responderei: Não importa, assim, teorizando a tristeza, diminuo a carga dela em mim e transponho um pouco pras palavras (que carregam o mundo nas costas e serifas).
Abraço!
Continue escrevendo! Não pá(a)ra!