sábado, 10 de setembro de 2011

Uma Mulher Chamada Guitarra



Vinicius de Moraes


UM DIA
, casualmente, eu disse a um amigo que a guitarra, ou violão, era "a música em forma de mulher". A frase o encantou e ele a andou espalhando como se ela constituísse o que os franceses chamam um mot d'esprit. Pesa-me ponderar que ela não quer ser nada disso; é, melhor, a pura verdade dos fatos.

0 violão é não só a música (com todas as suas possibilidades orquestrais latentes) em forma de mulher, como, de todos os instrumentos musicais que se inspiram na forma feminina — viola, violino, bandolim, violoncelo, contrabaixo — o único que representa a mulher ideal: nem grande, nem pequena; de pescoço alongado, ombros redondos e suaves, cintura fina e ancas plenas; cultivada, mas sem jactância; relutante em exibir-se, a não ser pela mão daquele a quem ama; atenta e obediente ao seu amado, mas sem perda de caráter e dignidade; e, na intimidade, terna, sábia e apaixonada. Há mulheres-violino, mulheres-violoncelo e até mulheres-contrabaixo.

Mas como recusam-se a estabelecer aquela íntima relação que o violão oferece; como negam-se a se deixar cantar, preferindo tornar-se objeto de solos ou partes orquestrais; como respondem mal ao contato dos dedos para se deixar vibrar, em benefício de agentes excitantes como arcos e palhetas, serão sempre preteridas, no final, pelas mulheres-violão, que um homem pode, sempre que quer, ter carinhosamente em seus braços e com ela passar horas de maravilhoso isolamento, sem necessidade, seja de tê-la em posições pouco cristãs, como acontece com os violoncelos, seja de estar obrigatoriamente de pé diante delas, como se dá com os contrabaixos.

Mesmo uma mulher-bandolim (vale dizer: um bandolim), se não encontrar um Jacob pela frente, está roubada. Sua voz é por demais estrídula para que se a suporte além de meia hora. E é nisso que a guitarra, ou violão (vale dizer: a mulher-violão), leva todas as vantagens. Nas mãos de um Segovia, de um Barrios, de um Sanz de la Mazza, de um Bonfá, de um Baden Powell, pode brilhar tão bem em sociedade quanto um violino nas mãos de um Oistrakh ou um violoncelo nas mãos de um Casals. Enquanto que aqueles instrumentos dificilmente poderão atingir a pungência ou a bossa peculiares que um violão pode ter, quer tocado canhestramente por um Jayme Ovalle ou um Manuel Bandeira, quer "passado na cara" por um João Gilberto ou mesmo o crioulo Zé-com-Fome, da Favela do Esqueleto.

Divino, delicioso instrumento que se casa tão bem com o amor e tudo o que, nos instantes mais belos da natureza, induz ao maravilhoso abandono! E não é à toa que um dos seus mais antigos ascendentes se chama viola d'amore, como a prenunciar o doce fenômeno de tantos corações diariamente feridos pelo melodioso acento de suas cordas... Até na maneira de ser tocado — contra o peito — lembra a mulher que se aninha nos braços do seu amado e, sem dizer-lhe nada, parece suplicar com beijos e carinhos que ele a tome toda, faça-a vibrar no mais fundo de si mesma, e a ame acima de tudo, pois do contrário ela não poderá ser nunca totalmente sua.

Ponha-se num céu alto uma Lua tranqüila. Pede ela um contrabaixo? Nunca! Um violoncelo? Talvez, mas só se por trás dele houvesse um Casals. Um bandolim? Nem por sombra! Um bandolim, com seus tremolos, lhe perturbaria o luminoso êxtase. E o que pede então (direis) uma Lua tranqüila num céu alto? E eu vos responderei; um violão. Pois dentre os instrumentos musicais criados pela mão do homem, só o violão é capaz de ouvir e de entender a Lua.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Acompanhamentos do dia 2

Ele batia firme com a esquerda

Nasceu assim eu não sei

De alguma forma sim

Pois nunca se deu bem com outra mão


Seu nome era bíblico, ele não

João da rua e dos palácios

Gozava a vida como poucos

Fazia o que deveria

Foi ele quem se mandou


Passou a vida em constância

Às voltas com o absurdo

Cegos, surdos e mudos

Tomavam-lhe o coração


Afogou-se nos dias


Luz dissolvida no espaço

Na pasta branca e vazia

No meio da rua às doze

Se automobilizava

Seguindo o rumo de casa


Tudo disputava-lhe a atenção

Mandando-o embora

Convidando-lhe para ficar


João espreguiçou a agonia


II


Tudo se movimenta, tudo se manifesta, floresce o tempo em cada instante.

Parte, João, vá apascentar seus pensamentos em outra terra

Corra em descobrir os segredos

O por quê de a vida escorrer estancando-se

Coma deste pomo e deixe que se mude em víbora, quando há de mudar

Cuida de não sacrificar-te mais nesses altares


Tornar-se ia pedras, dissolveria se em água

Já voou sendo águia. Também era João e nada

Infinitamente pequeno, mas infinito

Grande demais, se aprazia em se deitar na cama

Tornava-se pégasus nos sonhos

Acordava virado


Em um de seus braços tatuara “tudo foi”

Noutro estava escrito “tudo será”

Quando não estranhava seu nome

Era humano, sem saber o que era

Vivia com uma cuia na cabeça

E uma pedra no bolso da camisa

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Acompanhamentos do dia


Um cão na TV
Um professor que me corrige
Um condicionador de ar que ruge
Uma muriçoca que me consome
Vários copos d'água
Alguns alongamentos malogrados
Um olho que tudo vê
Geleia geral de tudo isso e misto quente nosso de cada dia
Alguma salada convém
Rotina vazia no prato de um braçal do tédio
Uma pitada daquele sal
Outra de açúcar pra eliminar a acidez
Misture bem
Misture ainda mais
Misture bem mais
Corra daí, menino: vai explodir!

Qual o quê, tudo se sustenta, nada dança no ar
É Deus quem olha até o meu ínfimo fio de cabelo
Que desafia o rótulo do shampoo
No tônus da sua espiral absurda
E paira por aí anunciando minha calvice futura
É Deus quem ladra na TV, na boca suja de um pastor?
Isso nunca me importou realmente!
O que me importa é descansar à sombra, no melhor lugar
Que nada me incomode, por favor,
Eu quero ver o espetáculo!
Receptáculo do Ser, só sei dizer o que não sou
Nesse momento de pavor secreto
Em que eu excreto o meu torpor
Na tela fria de um computador.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Resenha - Krig-Ha Bandolo! - Raul Seixas


Poucas coisas são tão prejudiciais à arte e ao artista quanto um rótulo: Raul Seixas permanece obscurecido pelo rótulo de Maluco Beleza, ou simples roqueiro doidão.


Se insistimos nessa visão única do Raul, perdemos todo o resto. O próprio Raulzito cantou "Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante"; Raul Seixas não é um, não é sequer um único ser em constante mutação... é um sujeito múltiplo, vários ao mesmo tempo.


Krig-Ha Bandolo é o terceiro álbum de Raul Seixas (antes dele vem Raulzito e os Panteras e Sociedade da Grã Ordem Kavernista), mas o primeiro álbum solo. Considero o dito álbum como seu trabalho de estréia, já que de fato através desse trabalho Raul se tornou conhecido. É um álbum genial, álbum solo de múltiplos 'eus'.





Introdução - Good Rockin' Tonight


Um Raul de 9 anos de idade introduz o disco. Esgoelando Elvis em uma época que Rock'n'Roll no Brasil era música de doméstica e caminhoneiro, Raul dá seu grito do Tarzan (Krig-Ha Bandolo). A faixa é o audio de uma gravação de Raul cantando rock em uma rádio, algo escandaloso para a Salvador da década de 50. Raul Seixas foi um dos primeiros sujeitos a ouvir, curtir e ser rocker nesse Brasil. Morando próximo à embaixada dos Estados Unidos na Bahia, conseguia discos que por aqui não eram vendidos com os filhos dos funcionários da embaixada; desse modo também, aprendeu a falar inglês e a macaquear os americanos. Além de Elvis, James Dean era seu ídolo na época: seus filmes inspiraram a rebeldia adolescente daquele Raul; do grupinho de arruaceiros à primeira banda de rock foi um pulo. Mas havia mais, havia outra coisa na infância do rocker: tinha a Bahia, o Nordeste, Brasil, Luiz Gonzaga!

01 - Mosca na Sopa

Após o grito do Tarzan em forma de rock'n'roll, o que poderia sugerir que todo o álbum apenas um disco de rock, ouve-se a ginga manhosa de um berimbau. Mosca na Sopa é uma música de terreiro, brasileiríssima! Acontece que Raul, desse modo, dinamitava justamente o nacionalismo, as fronteiras da música: depois de abrir o álbum com sua voz infantil bradando um rock americano, jogava com o berimbau e a percussão característicamente africana. Além, na própria faixa "Mosca na Sopa" há o movimento de transição da música de terreiro no verso para o refrão cantado como Rock'n'Roll.
Enquanto os nacionalistas da época mobilizavam todos os seus preconceitos para taxar Raul como entreguista, americanista, alienado, não percebiam algo que o próprio Rauzito já sacava e estava justamente afirmando na abertura de seu álbum: a música brasileira e a música americana têm uma origem comum, isto é, o universo rítmico africano. Diante disso, como pode se sustentar qualquer divisão arbitrária entre música americana/africana/brasileira? Raul manda à merda a ortodoxia, mistura toda a sonoridade que compõe seu imaginário musical em função de um poderoso, insistente e incisivo estribilho: "Eu sou a mosca que pousou em sua sopa!".
Raul Seixas, no meu modo de sentir, se apresenta à cultura brasileira de maneira brilhante com essa música; ela é seu cartão de visitas que diz "vou incomodar". Vou incomodar a ditadura, a mpb, a classe média rasteira, o Chacrinha, enfim, vou abalar a estrutura da sociedade brasileira!

02 – Metamorfose Ambulante

O que é que eu posso dizer de novo a respeito dessa música tão consagrada, executada, usada e abusada? Se for novidade eu não sei, mas tenho de dizer que tal canção é daquelas que apesar de (ou justamente por isso) exaustivamente escutada quase nunca foi ouvida. O fenômeno a que me referia aqui se manifesta, o sentido e a força da arte são envenenados e o que é tão sutil torna-se lugar comum. Graças a esse vício, Metamorfose Ambulante é o exemplo de arte que se torna estandarte dos grossos, os quais por sua insensibilidade jamais sentem o alcance do que é cantado. Como se não bastasse, aqueles que poderiam tirar dela melhor proveito voltam as costas, torcem o nariz, fazem cara feia aos versos já banalizados.
Um exemplo lamentável foi Lula se dizendo uma “metamorfose ambulante” para justificar com todo o cinismo do mundo sua adequação política. Qualquer pessoa que mude o penteado, o namorado, o carro, o estilo, os amigos, se identifica com o manifesto filosófico do Raul. Desconfiemos da linguagem: será possível que alguém realmente compreenda o sentido de algo sem que tal pessoa houvesse tido a “mesma” experiência? Será possível entender o que significa “metamorfose ambulante” sem vivenciar a experiência de desterro existencial a que a música faz um elogio? Ora, o número de pessoas que já escutou tal música é infinitamente maior do que a quantidade que vivenciou experiência paralela de desterro existencial.
Pode parecer esoterismo elitista o que estou dizendo. Não me esqueço de que Raul Seixas é e sempre vai ser uma figura popular, mas há algo nessa música que demanda refinamento e vivência. Esse é apenas um aspecto da música, há vários outros, o que afinal faz jus ao título, sentido e propósito da canção.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

O gafanhoto e o auto

Torci a chave, abri a porta e entrei no carro - nada mais natural. Antes de dar partida, surpreendeu-me, talvez por sua cor viva na escuridão, um gafanhoto! Que por ter um brilho quase viscoso, não pude sabê-lo dentro ou fora do carro. Cutuquei-o com a chave do carro para matar a dúvida. Não cutuquei-o, pois estava do outro lado da janela.
Sendo assim, pus em marcha o carro e um plano diletante (diabólico, diria o inseto) de ver até que ponto o gafanhoto resistiria à velocidade do carro. Meu palpite a essa altura era que o bicho voaria assustado, assim que o carro começasse a andar: o ponteiro marcava 20km, observei pela janela o gafanhoto, e tive a impressão de que o inseto me devolvia um olhar de desdém, como quem lança um desafio já certo da vitória. Aumentei para 40km, e o único efeito foi que o inseto passou a revirar suas antenas frenéticamente. Esse sinal fez com que eu pensasse que finalmente o bicho desistiria, mas que nada! Subi a 60km, já acima da velocidade permitida para uma via local, e o gafanhoto começou a envergar-se com a cor e a tenacidade implacável de uma vara verde.
Estava ciente de que via uma cena inusitada. Talvez ninguém jamais vira aquele inseto, naquela situação, naquela posição, daquele ângulo. No entanto, o gafanhoto me ultrajava... zombava de mim, mostrando a parte posterior de seu corpo obsceno. 'Os insetos são escandalosamente obscenos', pensei. 'Não há exterior e interior em um inseto, esqueleto, vísceras, pele estão todos ali, chapados em uma massa ao mesmo tempo viscosa e crocante, a se mostrar em seu todo'. Virei a esquina e dei com uma descida íngreme, perfeita para finalmente mandar pelos ares quele teimoso (e a essa altura admirável) gafanhoto. O auto atingiu 80km, e o inseto parecia mais firme do que nunca, curtindo a brisa, o passeio, o momento, frustando meu anseio legítimo e honesto de lhe causar um pequeno furacão que o arremessasse longe, de fazer do carro uma nave que o levasse a uma viagem intergalática. Frustando meu anseio legítimo, honesto e imperativo de ser Deus!!!
Já perto de casa, perdi o gafanhoto de vista. Mas não me iludia, sabia que ele estava ali, sentia sua presença desafiadora. Estacionei o carro na garagem, apeei do auto, fechei a porta e lá estava ele, vitorioso, pleno, um inseto. Fui tomado por um calafrio, ao lembrar uma chuva de gafanhotos, uma praga bíblica. 'Não é uma chuva, mas um gafanhoto por si só deve ser algo sério'. Me sentia ridículamente humano, inclusive por saber que uma chinelada poderia dar cabo àquilo tudo - mas eu já estava vencido.

sábado, 21 de agosto de 2010

Um sonho que eu tive

Um estudante de Goiânia está processando a rede de cinemas Severiano Ribeiro. Segundo ele, a rede lhe deu um calote de R$ 11,50 em doces.

"Fui induzido pela propaganda deles a pedir um combo de pipoca. Me arrependi daquilo, pois, como expliquei à balconista, jamais gostei de pipoca; ela me foi solícita e disse que falaria com a gerente, e que estaria fazendo de tudo para devolver meu dinheiro" disse o estudante

O curioso no caso é que, segundo testemunhas, tudo não passou de um sonho do cliente. No entanto, os advogados do estudante alegam total razão no caso:

" O meu cliente foi enganado, afinal a empresa prometeu algo e não cumpriu. De qualquer maneira, meu cliente foi frustrado em suas espectativas, - alguém tem de se responsabilizar. Diz o advogado.

A defesa retruca:

"Vamos nos mobilizar o máximo possível para defender os interesses da empresa. Essa eles não levam nem sonhando".



Ninguém ainda pensou em processar as grandes empresar pelas expectativas que nos geram? Afinal, tudo é motivo para um processo; os jornais venderiam fácil a notícia, pois a verdade é que o que se noticia hoje é tão fugaz que quase não existe de fato. Como eu dou de ombros para o dinheiro, fofocas e para as leis, resolvi escrever do nada, sobre algo que não existiu.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A: uma coisa que anda em alta ultimamente? O Flu!

B: Ora, o time?

A: o Tami!